O que é ideologia - Marilena Chauí
PARTINDO DE ALGUNS EXEMPLOS
Sistematizando o pensamento filosófico grego, Aristóteles elaborou algo que, a partir da filosofia medieval, ficou sendo conhecido como a teoria das quatro causas. Como se sabe, uma das maiores preocupações dos filósofos gregos era a explicação do movimento. Por movimento, os gregos entendiam: 1) toda mudança qualitativa de um corpo qualquer (por exemplo, uma semente que se toma árvore, um objeto branco que amarelece, um animal que adoece, etc.); 2) toda mudança quantitativa de um corpo qualquer (por exemplo, um corpo que aumente de volume ou diminua, um corpo que se divida em outros menores, etc,); 3) toda mudança de lugar ou locomoção de um corpo qualquer (por exemplo, a trajetória de uma flecha, o deslocamento de um barco, a queda de uma pedra, o levitar de uma pluma, etc.); 4) toda geração e corrupção dos corpos, isto é, o nascimento e perecimento das coisas e dos homens. Movimento, portanto significa para um grego toda e qualquer alteração de uma realidade, seja ela qual for. A teoria aristotélica das quatro causas, tal como foi recolhida e conservada pelos pensadores medievais, é uma das explicações encontradas pelo filósofo para dar conta do problema do movimento. Haveria, então, uma causa material (a matéria de que um corpo é constituído, como, por exemplo, a madeira, que seria a causa material da mesa), a causa formal (a forma que a matéria possui para constituir um corpo determinado, como, por exemplo, a forma da mesa que seria a causa formal da madeira), a causa motriz ou eficiente (a ação ou operação que faz com que uma matéria passe a ter uma determinada forma, como, por exemplo, quando o marceneiro fabrica a mesa) e, por último, a causa final (o motivo ou a razão pela qual uma determinada matéria passou a ter uma determinada forma, como, por exemplo, a mesa feita para servir como altar em um templo). Assim, as diferentes relações entre as quatro causas explicam tudo que existe, o modo como existe e se altera, e o fim ou motivo para o qual existe. Um aspecto fundamental dessa teoria da causalidade consiste no fato de que as quatro causas não possuem o mesmo valor, isto é, são concebidas como hierarquizadas indo da causa mais inferior à causa superior. Nessa hierarquia, a causa menos valiosa ou menos importante é a causa eficiente (a operação de fazer a causa material receber a causa formal, ou seja, o fabricar natural ou humano) e a causa mais valiosa ou mais importante é a causa final (o motivo ou finalidade da existência de alguma coisa). À primeira vista, essa teoria é uma pura concepção metafísica que serve para explicar de modo coerente e objetivo os fenômenos naturais (física) e os fenômenos humanos (ética, política e técnica). Nada parece indicar a menor relação entre a explicação causal do universo e a realidade social grega. Sabemos, porém, que a sociedade grega é escravagista e que a sociedade medieval se baseia na servidão, isto é, são sociedades que distinguem radicalmente os homens em superiores – os homens livres, que são cidadãos, na Grécia, e senhores feudais, na Europa medieval – e inferiores – os escravos, na Grécia, e os servos da gleba, na Idade Média. Mas, o que teria a concepção da causalidade a ver com tal divisão social? Muita coisa. Se tomarmos o cidadão ou o senhor e indagarmos a qual das causas ele corresponde, veremos que corresponde à causa final, isto é, o fim ou motivo pelo qual alguma coisa existe é o usuário dessa coisa, aquele que ordenou sua fabricação (por isso, na teologia cristã, Deus é considerado a causa final do universo, que existe “para Sua maior glória e honra”). Em outras palavras, a causa final está vinculada à idéia de uso e este depende da vontade de quem ordena a produção de alguma coisa. Se, por outro lado, indagarmos a que causa corresponde o escravo ou o servo, veremos que corresponde à causa motriz ou eficiente, isto é, ao trabalho graças ao qual uma certa matéria receberá uma certa forma para servir ao uso ou ao desejo do senhor. Compreende-se, então, por que a metafísica das quatro causas considera a causa final superior à eficiente, que se encontra inteiramente subordinada à primeira. Não só no plano da Natureza e do sobrenatural, mas também no plano humano ou social o trabalho aparece como elemento secundário ou inferior, a fabricação sendo menos importante do que seu fim. A causa eficiente é um simples meio ou instrumento. Temos, portanto, uma teoria geral para a explicação da realidade e de suas transformações que, na verdade, é a transposição involuntária para o plano das idéias de relações sociais muito determinadas. Quando o teórico elabora sua teoria, evidentemente não pensa estar realizando essa transposição, mas julga estar produzindo idéias verdadeiras que nada devem à existência histórica e social do pensador. Até pelo contrário, o pensador julga que com essas idéias poderá explicar a própria sociedade em que vive. Um dos traços fundamentais da ideologia consiste, justamente, em tomar as idéias como independentes da realidade histórica e social, de modo a fazer com que tais idéias expliquem aquela realidade, quando na verdade é essa realidade que torna compreensíveis as idéias elaboradas. Prossigamos com nosso exemplo. Vejamos agora o que sucede com a teoria da causalidade no mundo moderno, a partir da física elaborada nos séculos XVII e XVIII. Com os trabalhos de Galileu, Francis Bacon e Descartes (entre outros), o pensamento moderno reduziu as quatro causas apenas a duas: a eficiente e a final, passando a dar à palavra “causa” o sentido que hoje lhe damos, isto é, de operação ou ação. A física moderna considera que a Natureza age de modo inteiramente mecânico, isto é, como um sistema necessário de relações de causa e efeito, tomando a causa sempre e exclusivamente no sentido de causa motriz ou eficiente. Ou seja, não há causas finais na Natureza. No plano da metafísica, porém, além da causa eficiente, é conservada a causa final, pois esta se refere a toda ação voluntária e livre, ou seja, refere-se à ação de Deus e â dos homens. A vontade (divina e humana) é livre e age tendo em vista fins ou objetivos a serem alcançados. Assim, a Natureza se distingue de Deus e dos homens (enquanto espíritos); é que ela obedece a leis necessárias e impessoais – a causa eficiente define o reino da Natureza como reino da necessidade racional –, enquanto Deus e os homens agem por vontade livre – Deus e os homens constituem o reino da finalidade e da liberdade.
Para ler o texto na íntegra acesse o link abaixo:
http://www.mrherondomingues.seed.pr.gov.br/redeescola/escolas/27/1470/14/arquivos/File/Documentacao/Oqueideologia.pdf
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